Uma Criatura Amarga I
PRIMEIRA PARTE
Da autora
Essa é a minha versão do conto de Fiódor Dostoiévski “Uma criatura dócil”, mas, pela ótica da esposa. Em nada pretendo imitar a escrita deste grande autor ou roubar-lhe a ideia. É apenas a visão de alguém que em muito se identificou com a mulher desta narrativa.
Você não vai encontrar aqui uma auto biografia ou nada que o valha. Alguns pontos sim, certamente. Mas só quem muito me conhece vai conseguir identificar o que é real, o que é sentimento e o que é delírio de quem quer aumentar um ponto enquanto conta um conto. Ou seja, duas ou três pessoas no máximo. Porém, se pensar bem, pra quê tomar conhecimento do que é realmente meu? Só pela fofoca? Já que a fofoca é desprovida da obrigação de ser verídica, fiquem a vontade para falar da minha vida como queiram, não me importa. Os cochichos jamais mudarão o fato de que apenas eu sei o que vivi e senti. O resto é história tal qual esse conto.
Por se tratar de um conto longo, será contado em várias postagens. Tanto para vocês não abusarem quanto porque ainda não está completamente escrito. Então nem eu nem você sabemos como funcionará esta narrativa. Já faço mais ou menos ideia do que quero contar, mas quem sabe se de hoje pra amanhã o final muda? Só eu saberei.
1. Quem era eu e quem era ele
Agora não tem mais volta. Minha presença é só espírito, e mesmo somente esse espectro parece consolá-lo. Meu corpo jaz na sala, em cima da mesa, ainda sem caixão nem mortalha… Ele anda de um lado para o outro como quem tenta acreditar mas não consegue organizar nem os próprios pensamentos. Não podemos dizer que tudo aconteceu rápido demais. Foram sucessões de circunstâncias que obviamente não acabariam bem! Estava claro! Mas a morte é sempre um choque.
Nos conhecemos quando precisei penhorar alguns objetos para publicar um anúncio aonde me oferecia como doméstica, babá, professora, dama de companhia ou qualquer outra coisa que o valha. Precisava desesperadamente trabalhar! Eu tão comum e franzina, ele tão charmoso e bonito. Alto, corpo bem trabalhado e pele morena. Uma beleza tão certinha que me deixava acanhada de lhe dirigir a palavra. Então não me demorava, entrava muda e saía calada remoendo a dor de vender pertences que me eram tão caros. E ele sempre muito respeitoso e sisudo. Até o dia que levei uma jaquetinha antiga, se não me engano, e o homem se permitiu um gracejo. Sabia que não era maldade, mas ainda assim doeu. Então recolhi meus pertences e me retirei o mais rápido que pude na esperança de que ele não visse a lágrima discreta que teimava em descer
Era inevitável que eu retornasse àquela casa de penhores. Precisava dos pouquíssimo dinheiro que meus pertences humildes poderiam me dar. Tentei parecer o mais séria e formal que poderia ser, até o momento que ouvi um seco e cruel “Só faço isso para a senhora, Mozer não aceitaria esse tipo de
coisa”. Aquilo me rasgou o peito, mas ainda assim peguei o dinheiro e fui embora – o que não faz a pobreza!
Questionava a mim mesma: “Será que vale a pena continuar viva?!” Friamente decidi que não valeria, mas me faltava a coragem suficiente para por fim em minha própria existência. Já estava exausta de ser repetidamente colocada a prova, o mundo não parecia me querer nele. E isso nem era culpa do homem bonito e sisudo, ele é só uma peça de hostilidade.
Não tardei a voltar. Dessa vez ele fingiu uma cordialidade ridícula, e só me restava fingir uma doçura ridícula também. O paspalho não percebeu a ironia e seguiu insistindo em puxar conversa. Um tolo! Mas precisava dele para publicar meus anúncios, eu já estava desesperada. Procurava emprego que me aplacasse ao menos a fome. Meus recursos se esgotavam e não encontrei trabalho! O imundo achou então de me mostrar um anúncio que supostamente teria rendido bons frutos: “órfã de pai e mãe, procura emprego de preferência em casa de viúvo idoso”. É assim que eu deveria ser, vulnerável nesse mundo de bosta recebendo algum velho nojento na minha cama sem ninguém que intercedesse por mim.
Foi demais. Um nó se fez na garganta e as lágrimas desceram. Saí correndo dali e percebi que vim a esse mundo mulher para isso: para abrir as pernas para homens imundos pela minha sobrevivência. Até aqui eu havia resistido a esse destino, mas agora precisava me apossar dele da maneira menos horrível possível.
Voltei àquele lugar que cheirava a mofo e homem cheio de si, performando uma fragilidade que eu sabia que colocaria aquele imundo de boa aparência no papel de predador. Funcionou. Levei comigo uma imagem da Virgem. A Virgem com o Menino, antiga, familiar, caseira, com moldura de prata dourada. Aquilo valia mais para mim do que as moedas, mas era tudo que tinha.
Ele disse:
_ Seria melhor tirar a moldura e levar a imagem; mesmo porque a imagem, de qualquer maneira, não é muito apropriada.
– Por acaso é proibido?
– Não, proibido não é, mas talvez, para a senhora mesma…
– Então, tire.
– Quer saber de uma coisa, não vou tirar, e vou colocar ali no nicho com as outras imagens, embaixo da lamparina, e não faça cerimônia, tome dez rublos.
– Não preciso de dez, dê-me cinco, venho resgatá-la sem falta.
– Mas não quer os dez? A imagem vale.
Ele então encheu os peitos como um galo, coisa que os homens fazem quando querem se exibir. Ele interpretava o papel do salvador, e eu da mocinha em apuros.
– Não se deve desprezar ninguém, eu mesmo já passei por tais apuros, e até pior, minha senhora, e se hoje a senhora me vê em tal ocupação… Pois isso foi depois de tudo o que suportei…
– O senhor não está se vingando da sociedade, está? – e me arrependi no segundo que soltei o meu sarcasmo. Precisa controlar meu gênio.
– Veja, “eu sou uma parte daquela força que quer o mal, mas cria o bem…”.
Mas que diabos esse imundo está falando?! Controlar o gênio… Lembre-se! Controlar o gênio!
– Espere… Que pensamento é esse? De onde vem? Ouvi em algum lugar…
– Não precisa quebrar a cabeça, com estas palavras Mefistófeles recomenda-se a Fausto. Leu o Fausto?
– Não… Com muita atenção, não. – Nem com muita nem com pouca!
– Então, não leu absolutamente. Deveria ler. E aliás, torno a perceber nos lábios da senhora um sinal de troça. Por favor, não atribua a mim tanto mau gosto, como se eu, para embelezar meu papel de penhorista, quisesse recomendar-me à senhora como Mefistófeles. Uma vez agiota, sempre agiota. Sabemos disso, minha senhora.
– O senhor é estranho… Eu não queria absolutamente dizer lhe nada nesse sentido… – queria sim!
– Veja, em qualquer atividade é possível fazer o bem. Não é o meu caso, é certo: além do mal, vamos admitir, não faço nada, mas…
– É certo que se pode fazer o bem em qualquer profissão – eu disse tentando parecer inocente e pura – Absolutamente em qualquer profissão – e ali percebi que ele havia se apaixonado pela minha jovialidade.
Imundo tolo!
Se achava belo e poderoso! O mais inteligente tal qual todos do seu gênero se julgam. Mas há muito eu já sabia que ele andava investigando meus podres, e cuidei para que chegasse aos seus ouvidos só que lhe trouxesse o instinto burro de cuidar dessa pobre flor inocente que sou. Ele me queria!
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